Resumo

A escala bairro há muito se faz presente na paisagem urbana recifense. Desde os primeiros engenhos no vale do Capibaribe, passando pelas freguesias e povoados, arrabaldes, hoje Regiões Político-Administrativas e bairros componentes. Esses contornos ainda parecem ser os mesmos. Engenhos que viraram bairros. Bairros que são verdadeiros ‘genius loci’ do Recife. Apipucos e Casa Forte ‘engenhos’; Poço da Panela ‘freguesia’; Apipucos, Casa Forte e Poço da Panela ‘arrabaldes’; todos ‘bairros’ hoje. É nesta escala onde há maior convergência entre o espaço geométrico e o espaço social, onde é mais forte o sentido de lugar urbano. É um módulo espaço-social, outrora paroquial, associado a um suporte físico que o encerra. Ademais, apresenta sempre três características simultâneas e integrantes entre si: uma forma e um tamanho, um limite político-administrativo que o representa frente ao Estado e uma carga histórico-cultural da sociedade a que pertencem. Assim o são Apipucos e Poço da Panela. Relacionar essas características aos bairros estudados num viés histórico-temporal é a proposta deste ensaio.

Abstract

For a long time, the district scale appears in the urban landscape from Recife. Since the first mills in Capibaribe’s valley, passing through the parishes and villages, suburbs, today Politic-Administrative Regions and components districts. Theses aoutlines still seem to be the same. Mills that became districts. Districts which are Recife’s true ‘genius loci’. Apipucos and Casa Forte ‘mills’; Poço da Panela ‘parish’; Apipucos, Casa Forte and Poço da Panela ‘suburbs’; all ‘districts’ today. It is in this scale where there is larger convergence between the geometric space and the social space, where the sense of urban place is stronger. It is a space-social module, formely parochial, associated to a physical support which concludes it. Furthermore, it always presents three simultaneous and integrated characteristics: a shape and a size, a politic-administrative limit which represents it in the presence of Estate, and a historic-cultural charge of the society that it belongs. Thus are Apipucos and Poço da Panela. Relating these characteristics to the districts studied in a historical-temporal axis is the proposal of this essay.

Introdução

Primeiramente, as idéias aqui esboçadas fazem parte da Dissertação de Mestrado da pesquisadora, cujo tema foi este da escala bairro, tomando-se como pano de fundo os dois bairros recifenses situados no vale do rio Capibaribe. Acredita-se que sejam pertinentes e sirvam de ‘feedback’ para as idéias lançadas, pelas próprias características intrínsecas desses sítios aliadas ao histórico da ocupação urbana e parcelamento do território.

O que se pretende é interpretar o conceito de bairro sobre o tripé morfológico-dimensional, político-administrativo, histórico-social e ir comparando essa escala ao longo de um eixo temporal, no qual a nomenclatura vai mudando frente a uma mesma delimitação de escala, instituída desde o princípio de ocupação dessas terras. Verificar como esse tripé está esboçado e vai se moldando a cada etapa de ocupação e desenvolvimento da cidade, ilustrando ora com imagens ora com cartografia.

E por fim, a proposta da escala bairro passa inevitavelmente pelo questionamento da identidade urbana. Pressupomos que identidade advém de identificação, de reconhecimento de caráter, de características próprias, inerentes à sua personalidade. E como definir caráter, essência urbana? E especialmente a essência urbana recifense? Tentamos aqui a identificação por meio da escala bairro, que é ao mesmo tempo territorial e social[1], é o ponto de maior convergência entre o espaço social e o espaço geométrico, segundo Lefebvre[2]. Associada à idéia do ‘genius loci’[3], lenda romana em que se acreditava existir para cada cidade do império um genius próprio, guardião daquela urbis, presente não só nas edificações, mas também nas pessoas, no comportamento, na vida que se desenrolava ali. Genius que determinava seu caráter e sua essência, acompanhando-os do nascimento à morte. E para completar, toma-se como estudo de caso dois bairros recifenses – Apipucos e Poço da Panela, situados no vale fértil do Capibaribe, presentes desde o início da formação da cidade, palcos de acontecimentos históricos de relevo e desde sempre local de fixação da aristocracia açucareira recifense. São bairros cujas identidades se confundem com a identidade da própria cidade, onde a escala trabalhada muda sua nomenclatura face aos diferentes períodos históricos (engenhos freguesias e povoados  arrabaldes  bairros).

_________

[1]

Segundo Rapoport, “os bairros existem quando as dimensões físicas e sociais coincidem, quando há um esquema sócio-espacial significativo para as pessoas que notam seus limites, que por sua vez podem ser claros ou difusos”. Rapoport, A mos, 1978, págs. 155-163.

[2]

“É a  porta de entrada e saída entre espaços qualificados e espaço quantificado, o lugar de onde se faz a tradução (para e pelos usuários), dos espaços sociais (econômicos, políticos, culturais, etc.) em espaço comum, quer dizer, geométrico.

O bairro é uma unidade sociológica relativa, subordinada, que não define a realidade social, mas que é necessária. Sem bairros, igual que sem ruas, pode haver aglomeração, tecido urbano, megalópole, Mas não há cidade. É neste nível onde o espaço e o tempo dos habitantes tomam forma e sentido no espaço urbano”.  Lefebvre, Henri, 1971, págs. 195-203.

[3]

“Geniu Loci é um conceito Romano. Os romanos antigos acreditavam que existia um espírito do lugar – o genius loci (genius – espírito, loci – lugar), guardião para cada cidade. Cada lugar onde ocorria vida continha seu próprio genius, que se manifestava tanto na locação como na configuração espacial e na caracterização da articulação”.  Norberg-Schulz, Christian, 1980, pág. 18.

1. Os vários pontos de vista da escala Bairro

1.1. O bairro segundo dicionários e outras definições

Segundo a maioria dos dicionários, a definição de bairro recai sempre como ‘divisão territorial de uma cidade’, com algumas referências ao latim ‘barrium’ ou do árabe ‘barri’ (de fora, exterior, separado), que por sua vez de aproxima do ‘arraial’ (pequeno povoado rural), utilizado nas cidades de Minas Gerais, como se pode observar a seguir:

BAIRRO – Cada uma das partes em que se divide uma cidade.// Cada uma das divisões administrativas dos Concelhos de Lisboa e Porto, presidida por um administrador de bairro, com atribuições idênticas aos administradores de concelho nas outras terras do país. // Em geral, uma porção de território de qualquer povoação. // Do lat. “barrium”, ou do ár. “barri” (de fora, exterior).

AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Lisboa: Sociedade Industrial de Tipografia, 1948, 3a ed., v. 1.

BAIRRO – Cada uma das zonas principais em que se divide uma cidade, ou uma porção de território nas proximidades de um núcleo urbano.

CORONA & LEMOS, [...]. Dicionário da Arquitetura Brasileira. São Paulo: Edart, 1972.

BAIRRO – do lat. barra, barriu, o que é separado, delimitado, trancado.

    1.     Cada uma das partes principais em que se localiza a população de uma cidade.     2.     Porção de território de uma povoação, mais ou menos separada.     3.     Arrabalde, subúrbio.

GRANDE Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 595.

BAIRRO – 1. Cada uma das partes principais em que se divide uma cidade. ------------ 2. Porção de território de uma povoação. -----------   3. Arraial, povoação.

ENCYCLOPAEDIA Britannica do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1981, p. 245.

BAIRRO – Nome que, na Zona da Mata do estado de Minas Gerais, se dá aos pequenos povoados ou arraiais dos municípios. Tem a mesma significação de comércio, comercinho, rua, etc. Informação do Dr. Mário Campos, prefeito de Araxá (1928).

SOUZA, Bernardino José de. Dicionário da terra e da gente do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961, 5a ed., p. 23.

BAIRROS – São urbes elementares.

RUBIÓ, Manuel de Solá-Morales i. Las formas de crecimiento urbano. Barcelona: Ediciones de la Universitat Politécnica de Catalunya (UPC), 1997, p. 129.

Numa pesquisa sobre o povoamento do interior do estado de São Paulo e vizinhança, o sociólogo Antônio Candido obtém uma definição interessante que relaciona o recorte físico a laços afetivos: “(...) além de determinado território, o bairro se caracteriza por um segundo elemento, o ‘sentimento de localidade’ existente nos seus moradores, e cuja formação depende não apenas da posição geográfica, mas também do intercâmbio entre as famílias e as pessoas, vestindo por assim dizer o esqueleto topográfico: - O que é bairro? – perguntei certa vez a um velho caipira, cuja resposta pronta exprime numa frase o que se vem expondo aqui: - Bairro é uma naçãozinha. – Entenda-se: a porção de terra a que os moradores têm consciência de pertencer, formando uma certa unidade diferente das outras”[4] .

Em Portugal, a definição de bairro está associada ao “lugar de freguesia de ...”, ou seja, várias freguesias formam um bairro , sendo este uma região político-administrativa espacialmente maior  do que os recortes brasileiros. A cidade de Lisboa se encontra dividida em apenas 4 grandes bairros (Lisboa Oriental, Lisboa Ocidental, Bairro Alto e Bairro Baixo), que encobrem um total de 43 freguesias, cada uma devota de um santo protetor. O reconhecimento do território pelos seus habitantes é feito pela denominação das freguesias, os bairros servem apenas para funções administrativas e de controle de serviços por parte da Câmara Administrativa de Lisboa, espécie de Prefeitura local[5]. Situação que permanece até os dias de hoje.

O geógrafo Marcelo Souza em seu ensaio sobre bairro como unidade política, busca a fundo o significado da raiz do vocábulo em outras línguas. Apoiando-se no Diccionario Etimológico de la Lengua Castellana, o qual define ‘barrio’ como:

“voz tomada do árabe, e que só se acha em nosso idioma, no português (bairro) e no catalão (barri). A etimologia é barr, bar, terra, campo, campo imediato a uma população. Bar, barr, barrio, continuou chamando-se esse campo mesmo depois de se haver edificado nele; e por último veio a significar ‘barrio’ uma das divisões locais ou municipais das povoações, e sobretudo das povoações grandes. Em algumas partes por ‘barrio’ se entende o mesmo que arrabalde, grupo de população situado no extremo da mesma, ou um pouco separado dela.

Embora na língua francesa a raiz etimológica seja diferente, o francês quartier designa uma realidade similar à do bairro. E também no caso francês, embora quartier e banlieue (subúrbio, periferia) não se confundam exatamente, podemos encontrar quartiers em áreas periféricas.

Já na língua inglesa a questão terminológica é mais complicada. A palavra inglesa neighbourhood parece frequentemente cobrir uma escala intermediária entre a unité de voisinage e o quartier da literatura sociológica culturalista francesa. Isto explica o porque de se enfatizar o papel do neighbourhood como uma “área de relações primárias e espontâneas”, o que não combina com o conceito francês de quartier, aproximando-se, isto sim, da unité de voisinage.  No entanto, parece que a neighbourhood unit dos anglo-saxões e a unité de voisinage, à parte a analogia vocabular, não são rigorosamente idênticas, embora muitas vezes recubram a mesma escala espacial, pois a unité me afigura elástica a ponto de abarcar escalas muito pontuais (como um prédio de apartamentos), o que não seria o caso do neighbourhood. Seja como for, são as relações de tipo primário, e não as de tipo secundário como no quartier, que definem em princípio o neighbourhood.

O district, outro referencial, define-se precipuamente pelas relações de tipo secundário que se dão à sua escala. O district estará extremamente próximo do bairro, do ‘barrio’ e do quartier, variando não somente conforme o indivíduo, mas também segundo a cidade em questão. Por outro lado, talvez justamente por representar uma escala amiúde excessivamente ampla, parece que o neighbourhood, e não o district, é o recorte territorial preferencial dos ativismos anglo-saxões, o que aparentemente também denuncia seu extremado paroquialismo”[6], afirma.

1.2. Do ponto de vista morfológico-dimensional

O bairro revela, antes de tudo, uma forma física, um pedaço urbano que cresce segundo tais eixos ou tais direções, e um determinado tamanho, seu traçado segue uma lógica espaço-social. Ou seja, o bairro é uma unidade morfológica espacial e morfológica social ao mesmo tempo. Segundo Aldo Rossi:

“a cidade, na sua vastidão e na sua beleza, é uma criação nascida de numerosos e diversos momentos de formação; a unidade desses momentos é a unidade urbana em seu conjunto, a possibilidade de ler a cidade com continuidade reside em seu preeminente caráter formal e espacial.

A unidade dessas partes é dada fundamentalmente pela história, pela memória que a cidade tem de si mesma. Essas áreas, essas partes, são definidas essencialmente pela sua localização: são a projeção no terreno dos fatos urbanos, a sua comensurabilidade topográfica e a sua presença, cultural e geográfica suficientemente circunscrita.

O bairro torna-se, pois, um momento, um setor da forma da cidade, intimamente ligado à sua evolução e à sua natureza, constituído por partes e à sua imagem. Para a morfologia social, o bairro é uma unidade morfológica e estrutural; é caracterizado por uma certa paisagem urbana, por um certo conteúdo social e por uma função; portanto, uma mudança num desses elementos é suficiente para alterar o limite do bairro”[7] .

Em seguida, equaciona a escala bairro como sendo a intermediária entre as 3 escalas que, segundo ele, compõem uma cidade:

A escala da rua, sendo os elementos fundamentais da paisagem urbana à escala da rua os imóveis de habitação, entendendo o imóvel como uma parcela cadastral em que a principal ocupação do solo é constituída por construção; A escala de bairro, formada por um conjunto de quarteirões com característica comuns; A escala da cidade, considerada como um conjunto de bairros.

A mesma leitura que será feita por Lamas, só que denominando as escalas  de ‘dimensões’:

“Dimensão Setorial – a escala da RUA A mais pequena unidade, ou porção de espaço urbano, com forma própria. Os elementos morfológicos identificáveis são essencialmente os edifícios, o traçado e também a árvore ou a estrutura verde, desenho do solo e o mobiliário urbano. Dimensão Urbana – a escala do BAIRRO É a partir desta dimensão, ou escala, que existe verdadeiramente a área urbana, a cidade ou parte dela. Pressupõe uma estrutura de ruas, praças ou formas de escalas inferiores. Corresponde numa cidade aos bairros, às partes homogêneas identificáveis, e pode englobar a totalidade da vila, aldeia, ou da própria cidade. A esta dimensão, os elementos morfológicos terão de ser identificados com as formas à escala inferior e a análise da forma necessita do movimento e de vários percursos. São os traçados e praças, os quarteirões e monumentos, os jardins e áreas verdes, que constituem os elementos morfológicos identificáveis. Diremos também que a forma a esta escala se constitui pela adição de formas à escala inferior. Dimensão Territorial – a escala da CIDADE Nesta dimensão, a forma estrutura-se através da articulação de diferentes formas à dimensão urbana, diferentes bairros ligados entre si. A forma das cidades define-se pela distribuição dos seus elementos primários ou estruturantes: o macrossistema de arruamentos e os bairros, as zonas habitacionais, centrais ou produtivas, que se articulam entre si e com o suporte geográfico”[8] .

FIGURA 01 – Esboço ilustrativo das diferentes escalas urbanas. In: SANTOS, Carlos Nelson dos. A cidade como um jogo de cartas. Niterói: Eduff; São Paulo: Projeto, 1988, p. 160.

Quanto aos dados numéricos de um bairro em si, encontrou-se referências quanto ao número de habitantes, moradias, extensão numérica e número de quadras e lotes. A maioria vêm de bairros franceses do pós-guerra, assim podemos dizer que um bairro agruparia entre 2.000 e 3.000 moradias (em torno de um centro secundário)[9]  teria uma população entre 5.000 e 10.000 habitantes[10]; e uma extensão de 3 a 5 km de perímetro [11].

Sem qualquer paralelo com os bairros estudados, o princípio da grelha também quantifica a escala bairro, como se pode observar na figura 02, utilizado na implantação de 6 cidades novas ao norte de Roraima [12]. A celula mínima é o lote, de 20 a 48 lotes agregados dão lugar a um quarteirão, e um conjunto de 9 quarteirões, configuram uma unidade de vizinhança. Para chegar à escala de bairro será preciso articular quatro conjuntos de vizinhança com nove quarteirões cada. E não é só isso; quando as 36 quadras resultantes são postas juntas já se arma uma configuração hierárquica. A cada três ruas, uma se destaca por ser mais importante. Fica evidente o desenho de uma grande grelha que poderia se expandir em qualquer direção ou sobre qualquer território geofísico, bastava seguir sempre os mesmos princípios lógicos, a hierarquia e o agrupamento de escalas poderiam continuar infinitamente.

FIGURA 02

– Lote, quadra, unidade de vizinhança e bairro, a hierarquia e o agrupamento das escalas na composição do tecido urbano, segundo o sistema regular da grelha. In: SANTOS, Carlos Nelson dos. A cidade como um jogo de cartas. Niterói: Eduff; São Paulo: Projeto, 1988, p. 118.

Se observarmos as figuras 03 e 04 a seguir, veremos que os bairros estudados têm extensão de alguns hectares e uma população estimada em torno de 3.000 hab. E além disso, não daria nem para quantificar o número de quadras em Apipucos, pelas próprias características dos assentamentos aliados ao perfil físico-geográfico do sítio. Mas nem por isso deixam de ser bairros, e com fortes significados e memórias urbanas. O que nos remete a idéia do tripé, ou seja, só funcionam as 3 bases juntas e entrelaçadas.

1.3. Do ponto de vista político-administrativo

O bairro corresponde à dimensão de território ideal para a reivindicação coletiva. Esta especificidade do bairro torna-o uma unidade politicamente importante. “Inegavelmente, o bairro constitui hoje a unidade urbana, a representação mais legítima da espacialidade de sua população, e não é por acaso que São Paulo conta com 900 “sociedades de moradores”, também conhecidas como “sociedade amigos do bairro”, cuja territorialidade é facilmente estabelecida”[13]. Discurso que é retomado por Souza, em sua abordagem política acerca do bairro: “ele é um referencial direto e decisivo, pois define territorialmente a base social de um ativismo, de uma organização, aglutinando grupos e por vezes classes diferentes (em níveis variáveis de acomodação ou tensão); catalisa a referência simbólica e, politicamente, o enfrentamento de uma problemática com imediata expressão espacial: insuficiência dos equipamentos de consumo coletivo, problemas habitacionais, segregação sócio-espacial, intervenções urbanísticas autoritárias, centralização da gestão territorial, massificação do bairro e deterioração da qualidade de vida urbana” [14].

No Recife, muitos engenhos viraram bairros, “na definição clássica, bairro é a denominação de cada uma das partes com que se costuma dividir uma cidade, para facilitar a orientação das pessoas e o controle administrativo dos serviços públicos, como correios, telefonia e limpeza. Os bairros, no entanto, não surgem ao acaso. Lutas e conflitos marcam a formação dessas áreas e até influenciam na escolha dos nomes. No Recife, muitos bairros têm origem nos engenhos situados às margens do rio Capibaribe. Aliás, a conquista do rio é um dos fatores mais expressivos no processo de formação e organização da cidade do Recife.

Para a secretária de Planejamento do Município, o bairro é a expressão da identidade cultural da cidade. Toda pessoa procura morar no lugar que se parece com seu modo de vida, essa é a importância do bairro”[15].

Rapoport define o bairro como um ESQUEMA SÓCIO-ESPACIAL, significativo para as pessoas que notam os limites. Estes limites, muitas vezes ruas, podem ser claros ou difusos. “O esquema – edifícios e gente – é mais claro que o fundo informal da cidade. Poderiam-se classificar em duas grandes dimensões: físicas e sociais, e os bairros existem, sobretudo, quando ambas as dimensões coincidem. Para definir um bairro, se usam por sua vez, critérios físicos e critérios sociais, com a influência, já indicada, da preferência e da seleção do habitat, já que gente análoga escolhe áreas similares reforçando o caráter social e físico das mesmas.

Quase nunca as divisões oficiais coincidem com as subjetivas. As áreas têm que distinguir-se umas das outras, as fronteiras devem ter significado, com uma vida característica em comum. As divisões políticas e as divisões planificadoras são demasiado grandes. As delimitações mais claras de áreas subjetivas têm lugar quando barreiras físicas bem definidas coincidem com os esquemas cognitivos”[16].

Na identificação de um bairro, para a maioria dos habitantes não interessa o seu limite formal, porque se já o identificam físico-cognitivamente, pouco lhes importa até onde se estendem suas linhas. Porém, limites administrativos e limites subjetivos devem coexistir. Não coincidem na imensa maioria das vezes, porém faz-se necessário que existam, caso contrário essa escala urbana não existiria de fato. Os (limites) administrativos são necessários porque é a partir deles que aquele recorte é identificado oficialmente e planejado ou assistido pelo órgão gestor; e os (limites) subjetivos fazem-se necessários porque (o módulo social é aí definido) é a partir de sua definição coletiva que a base social se instaura, as reivindicações tomam corpo e o suporte físico o faz único.

FIGURA 03

– Apipucos, desenho ilustrativo segundo as Plantas Cadastrais nos. 81-52-00; 81-52-05; 81-62-00; 81-62-05; 81-63-00; 81-63-05; 81-64-00; 81-72-05; 81-73-00; 81-74-00. Recife: FIDEM, 1989.

FIGURA 04

 – Poço da Panela, desenho ilustrativo segundo as Plantas Cadastrais nos. 81-70-05; 81-71-05; 81-72-00; 81-80-05; 81-81-00; 81-81-05. Recife: FIDEM, 1989.

1.4. Do ponto de vista histórico-social

Lefebvre reforça a idéia que o bairro corresponde a uma escala territorial que é definida também por um módulo social, ou melhor, é onde há maior convergência entre o espaço geométrico e o espaço social , entre o quantificado e o qualificado. “O bairro seria a ‘diferença mínima’ entre os espaços sociais múltiplos e diversificados, ordenados pelas instituições e pelos centros ativos. Seria o ponto de contato mais acessível entre o espaço geométrico e o espaço social, o ponto de transição entre um e outro; a porta de entrada e saída entre espaços qualificados e  espaço quantificado, o lugar de onde se faz a tradução (para e pelos usuários), dos espaços sociais (econômicos, políticos, culturais, etc.) em espaço comum, quer dizer, geométrico.

O bairro é uma unidade sociológica relativa, subordinada, que não define a realidade social, mas que é necessária. Sem bairros, igual que sem ruas, pode haver aglomeração, tecido urbano, megalópole. Mas não há cidade” [17] (grifos meus).

Poderia ser batizado também de ‘escala paroquial’ [18], já que a paróquia não só tinha uma existência religiosa, e sim também uma existência civil e política. Não existia o que chamamos ‘estado civil’; os batismos, os casamentos e os óbitos se inscreviam nos registros paroquiais; os grupos e associações se organizavam ao redor do aparato eclesiástico.

Para Carlos Nelson dos Santos, a noção de centralidade é mais importante do que o reconhecimento de limites: para os habitantes de um bairro, ele existe em função de seu centro. E esses centros correspondiam à organização das paróquias da Igreja Católica. Cada paróquia tinha seu templo e seu santo, se organizavam em torno deles e de outras facilidades como feiras e mercados. Importa mais saber em que local há maior superposição de significados do que precisar onde começa uma zona homogênea e acaba outra.

“Em tempos antigos, que precedem a descoberta do Brasil, correspondiam à organização das paróquias da Igreja Católica. Era fácil fazer distinções: cada paróquia tinha seu templo e seu santo, se organizavam em torno deles e de outras facilidades como feiras e mercados. Foi essa a tradição trazida de Portugal. Em geral, nos centros urbanos mais antigos, os bairros são mais fáceis de identificar” [19].

Outra referência vem dos burgos da Paris medieval (talvez uma das primeiras divisões da escala bairro no mundo), através dos estudos de Richard Sennett. Burgos que não tinham paredões, mas eram igualmente dotados de amplos e bem definidos direitos. Inclusive os direitos de construção, que eram vendidos (não eram vendidos os lotes, mas sim o direito de construir), pagando-se taxas à Coroa ou a Igreja. Cada burgo correspondia a uma paróquia, que tinha seu santo devoto.

“Sem paredões, mas igualmente dotado de amplos e bem definidos direitos era o ‘bourg’, o mais antigo dos quais – Saint Germain – ficava na margem esquerda do rio. Embora populoso, todas as suas terras faziam parte dos bens de quatro igrejas que compunham a paróquia; no local da maior delas, situa-se hoje a moderna Igreja de Saint-Sulpice. Um burgo não estava submetido a um controle único (...).A maioria das frações de terreno em uma cité, ou num burgo, estavam arrendadas, e, frequentemente, vendiam-se os direitos de construção. Assim, as pessoas construíam a seu bel-prazer, pagando taxas à Coroa ou à Igreja” [20].

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[4] Sousa, Antonio Candido Mello e., 1987, págs. 57-65.
[5]

Informação obtida  verbalmente em entrevista com a profa. Joana Cunha Leal, do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Nova de Lisboa, doutorando sobre o tema, e posteriormente cruzada com bibliografia portuguesa obtida em bibliotecas.

[6] Souza, Marcelo José Lopes de, 1989, págs. 153-154.
[7]  Rossi, Aldo, 1995, págs. 63-67.
[8] Lamas, José Ressano Garcia, 1993, págs. 74-76.
[9]  Lacaze, Jean Paul, 1993, págs. 33-37.
[10] Rapoport, Amos, 1978, pág. 155.
[11] Ledrut apud Souza, Marcelo José Lopes de, 1989, pág. 144. 
[12] Santos, Carlos Nelson dos, 1988, pág. 115. 
[13] Wilheim, Jorge, 1982, págs. 63-65. 
[14] Souza, Marcelo José Lopes de, 1989, pág. 140. 
[15] Recife, 462 anos depois: engenhos originaram bairros recifenses. Jornal do Commercio, Recife, 7 mar. 1999, Caderno Cidades, p. 2.
[16]

Rapoport, Amos, 1978, págs. 162-163. 

[17] Lefebvre, Henri, 1971, págs. 195-200. 
[18]

“A separação entre o religioso e o civil, entre a Igreja e as instituições, é um feito real e um conceito teórico ao mesmo tempo. As paróquias constituíam bairros, e quando a cidade, ao fazer-se demasiado grande, perdeu sua unidade e seu caráter de comunidade local, o seu núcleo – a igreja paroquial – perdeu simultaneamente suas funções e sua capacidade estruturante. Em consequência: a conexão bairro-paróquia, que em outros tempos constituía uma realidade, já não tem mais fundamento. Esta passa a ter uma existência simbólica mais que funcional ou estrutural; o que está simbolizado tem sua sede e seu sentido mais longe; é a religião, a Igreja Católica e Romana, cuja sede do poder papal está bem distante”. Lefebvre, Henri, 1971, págs. 197-198. 

[19] Santos, Carlos Nelson Ferreira dos, 1988, págs.113-115.
[20] Sennett, Richard, 1997, págs.163-164. 

2. No Recife, o caso dos engenhos que viraram Bairros

2.1. Das terras da Capitania aos engenhos (séc. XVI a XVII – 1500 a +-1650)

Brasil – Colônia, sistema de Capitanias Hereditárias instaurado, o parcelamento territorial dentro de tais limites passam a ser os das sesmarias e das datas de terra doadas pelo donatário de cada capitania. No Nordeste e especialmente em Pernambuco, a atividade econômica que vai estabelecer a morfologia e a dimensão desses recortes vai ser a cana-de-açúcar, os “engenhos”. Embora o tamanho de uma sesmaria estivesse mais ou menos estabelecido[21], a localização dos equipamentos e a própria fundação do engenho em si levava muito em conta as características geofísicas do sítio, e daí o importantíssimo papel dos rios e cursos d’água. Interesses que vão se casar perfeitamente com o sítio geográfico recifense, todo recortado por rios e ainda não ocupado, havendo uma aglomeração apenas na ilha portuária, na desembocadura dos rios Capibaribe e Beberibe no oceano.

A composição urbana de então se dividia entre a Vila de Olinda, de fato instituída como vila e contendo o aparato jurídico e burocrático da capitania (no alto da colina), o centro portuário – um agrupamento de pescadores e comerciantes, num enlameado de poças d’água, bancos de areia e mangue, e a planície recifense – um extenso canavial longíquo cujo melhor acesso ainda era pelo rio. A oeste ou para trás dessa aldeia de pescadores ficavam espalhados os engenhos açucareiros, próximos aos cursos d’água e matas para seu abastecimento, constituindo, nessa época, terras distantes em relação ao porto.

Ou, nas palavras mais poéticas de Josué de Castro:

“o Recife viveu, desde suas origens, sempre atraído por duas seduções opostas: a do vasto mar salpicado de caravelas e a do ondulado mar dos canaviais espalhados nas grandes várzeas. De um lado, pelo azul das águas e de outro pelo verde das canas”[22].

O vale do Capibaribe vai logo despontar como um dos eixos de ocupação dessa extensa planície.

“Os engenhos eram centros de grande atividade, de cultura, de população numerosa, verdadeiras zonas de riqueza e de prosperidade, assentados às margens do Capibaribe, desse rio que se impôs como acidente geográfico e fator econômico e histórico de primeira ordem, na comunicação desses valores locais, com um centro comum que era o porto”[23].

A planície recifense se encontrava dividida em 14 ou 16 engenhos, entre eles o engenho Apipucos e o Casa Forte, como se pode observar nas figuras 5 a 7. O número de desmembramentos era constante, daí a diferença no número total de engenhos entre algumas fontes bibliográficas. O próprio engenhos Apipucos foi desmembrado do engenho Monteiro, assim como posteriormente vai ser desmembrado de suas terras outro engenho, o de Dois Irmãos. Já o engenho Casa Forte (o Poço ainda não existia, fazia parte das terras deste engenho) teve sua origem como dote nupcial a uma nobre portuguesa que viera como junto com a família do primeiro donatário da Capitania de Pernambuco. E que mais tarde por ocasião do domínio holandês vai ser uma autêntica ‘casa forte’ para as tropas flamengas. A figura 5 pontua esses engenhos na planície (não seus contornos), embora seus limites de fato existissem nas escrituras das respectivas propriedades lavradas na Vila de Olinda, onde se concentrava todo o aparato jurídico.

FIGURA 05

 – EST. Gráfico Brasileiro Dreschler & Cia. Monumentos e curiosidades da Guerra Holandesa em Pernambuco: 1630-1654. Recife: Comissão de Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, 1941. Fonte: Museu do Estado, Recife, PE.

FIGURA 06

 – POST, Frans. Parte da casa grande e o engenhos Apipucos, séc. XVII. Coleção National Gallery, Dublin. Fonte: Arquivo Público Estadual, Recife, PE.

FIGURA 07

 – POST,  Frans. A  capela, o engenho Apipucos e o rio Capibaribe, ‘sec. XVII. Coleção Harewood ou Warwood. Fonte: Arquivo Público Estadual, Recife, PE.

2.2. Dos engenhos às freguesias e povoados (séc. XVII a XIX – 1650 a +-1850)

É nesta altura que começa oficialmente a história do Poço da Panela, que já nasce praticamente como freguesia. A história é a seguinte: no final dos 1700 e começo dos 1800 aparece no Recife uma febre maligna que vitima milhares de pessoas. Diante do quadro são recomendados banhos terapêuticos no rio Capibaribe, e os locais mais recomendados são os povoados do Poço, Monteiro e Apipucos, tanto para a construção de banheiros à beira rio como para os próprios banhos. O Poço era habitado por palhoças de lavadeiras até então. A esposa de um coronel da época vai para lá gravemente enferma e faz uma promessa à N. Senhora que caso se curasse, doaria um terreno na localidade para ser erguida uma capela. A promessa se cumpre e surge assim uma capela em homenagem à N. S. da Saúde, próxima ao rio, de dimensões reduzidas (20 palmos de frente por 40 de fundo), que logo vai ser curada e o povoado erigido em paróquia (por volta de 1820). E assim permanece por quase um século, até que a matriz de Casa Forte é reformada junto à praça de mesmo nome e assume a sede da paróquia, situação que permanece até os dias atuais.

Quanto ao nome, o povoado tem origem num poço (cacimba) de água potável que é escavado na localidade, já que esta não contava com outras fontes de abastecimento. No interior deste poço é colocada uma parede de sustentação de ‘barro’ sem fundo, que tinha a forma de uma ‘panela’, daí a expressão ‘poço da panela’ que passou a designar o local até hoje, e que passa despercebido pela maioria de seus habitantes e usuários. A localização deste poço está ilustrada nas figuras 08 a 11, juntamente com o busto do abolicionista José Mariano, figura política das mais conhecidas do Recife.

Uma freguesia era uma célula menor, simultaneamente eclesiástica e administrativa, de um urbano maior, de que fazia parte. Era um posto de reconhecimento elevado, tinha status um povoado que se elevava à categoria de freguesia ou paróquia [24]. No Recife, houve 13 freguesias segundo o IBGE (tabela 01), ou 11, pelo Diccionario Chorographico, através do qual se tentou esboçar a figura 12. A diferença é que no dicionário se considera a Encruzilhada como povoação da freguesia das Graças e Peres como povoação da freguesia de Afogados. O limite de uma freguesia era muito extenso, englobava vários bairros de hoje, várias capelas, vários engenhos, vários povoados, vários fogos. A freguesia do Poço incluía o próprio Poço, Apipucos, Casa Forte, Monteiro, D. Irmãos e se extendia até Olinda ao norte, Camaragibe à oeste, as freguesias da Boa Vista e da Várzea pelo eixo do rio Capibaribe.

 FIGURA 08

– Estrada Real do Poço e o largo da Igreja de N. S. da Saúde. Foto: Gustavo Maia, 1999.

 

FIGURA 09

- Localização do 'poço' que deu origem ao nome do bairro, junto ao largo da igreja. Recorte da Planta Cadastral no. 81-71-05. Recife: FIDEM, 1989.

FIGURA 10

– Poço artesiano  (cacimba) que deu origem ao nome da localidade do Poço da Panela. Foto e croquis: a autora, 1999.

FIGURA 11

 - Localização do referido poço, próximo a residência do Dr. José Mariano, no terreno da igreja. Foto: a autora, 1999.

FIGURA 12

 – Esboço esquemático dos possíveis limites das freguesias do Município do Recife, baseado nas descrições do Diccionario Chorographico de PE e nas Regiões Político-Administrativas atuais (RPA’s).

TABELA 01

FREGUESIAS HABITANTES DOMICÍLIOS DENSIDADE DOMICILIAR
1. Recife 5.146 842 6,11
2. Santo Antônio 14.587 2.166 6,86
3. 1o Distrito de São José 16.525 2.330 7,09
4. 2o Distrito de São José 15.879 2.889 5,5
5. Boa Vista 22.876 2.975 7,68
6. Santo Amaro 16.967 3.082 5,51
7. Graças 11.884 1.991 5,97
8. Encruzilhada (pov. da  freg. Das Graças) 26.272 5.024 5,23
9. Afogados 15.578 3.110 5,45
10. Madalena 9.224 1.687 5,05
11. Torre 14.461 2.863 5,42
12. Peres (pov. do 3o. distrito de Afogados) 9.663 1.839 5,53
13. Poço da Panela 23.857 4.317 5,32
14. Várzea 13.887 2.615 5,31
TOTAL 230.963 37.730 6,12

– Densidade domiciliar do Município do Recife em 12 de outubro de 1913, segundo as freguesias. Fonte: IBGE – Recenseamento Domiciliar do Município do Recife, Estado de Pernambuco, 1913.

2.3. Das freguesias e povoados aos arrabaldes e bairros (séc. XIX e XX – 1850 a +-1930)

Inicialmente povoações sazonais para passatempos de férias, veraneios e terapias médicas, esses povoados vão se tornando moradias definitivas, na medida em que se avança os séculos XIX e XX. As grandes propriedades vão ser repartidas e loteadas. Chegam os ingleses e germânicos, funcionários das companhias de serviços públicos (saneamento, transportes coletivos, abastecimento d’água.etc.), que preferem residir neste trecho da cidade, em meio à natureza e belíssima paisagem, de hábitos rurais, com transporte fácil para o centro; a viver nos sobrados magros e fétidos do centro. O que também chama os nativos a optarem por esses arrabaldes.

É a época da chegada das ordens religiosas (os Maristas em Apipucos e as irmãs francesas em Casa Forte) e dos viajantes (Tollenare, Korster, etc.), que vão produzir caprichosos elogios a esses arrabaldes. De fato, o século XIX se transforma na época áurea desses recortes, quando aflora todo o lado social engajado nos novos hábitos urbanos – é a época dos saraus noturnos, das festas, dos novenários da igreja, do hotel de Apipucos, do teatro do Poço, da palestras, da evolução dos meios de transporte coletivos: bondes de burro, maxambombas, bondes elétricos, trens urbanos.

Como a própria nomenclatura esclarece – arrabal – o que está distante, fora do perímetro urbano adensado, a várzea do Capibaribe ainda era pouco ocupada se comparada ao centro do Recife (bairros do Recife, Boa Vista, Sto. Antônio e S. José). Os limites formais destes arrabaldes não estavam espacializados em nenhuma carta conhecida ou levantada, apesar da fartura de bibliografia sobre os arredores e arrabaldes do Recife.

FIGURA 13

 – Poço da Panela em 1847, vista da margem direita do rio Capibaribe. Litografia colorida `a mão, executada em Dresden. Autor: W. Bassler, 17.4 x 25.7cm. In: FERREZ, Gilberto. Raras e preciosas vistas e panoramas do Recife: 1755-1855. Recife: Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, 1984, p. 51.

FIGURA 14

 – Família pernambucana saindo a passeio em canoa, no rio Capibaribe, na Ponte d’Uchoa, em 1819. Litografia. Autor: C. Shoosmith, 15.9 x 22.5cm. Coleção Henderson, 1821. In: FERREZ, Gilberto (org.). Iconografia do Recife: século XIX – Exposição Comemorativa. Recife: Comissão Executiva e Organizadora de Pernambuco, 1954, p. 17.

2.4. Os bairros de Apipucos e Poço da Panela hoje (séc. XX e XXI - +-1930 a 2000)

Passada a época áurea, sentimentos de saudosismo e ares bucólicos dominam a cena atual quando se relaciona esses bairros. Mas por outro lado continuam a abrigar a história e a inspirar novas gerações de artistas e heróis locais. Suas paisagens são fontes de geração e concentração para diversos ateliês espalhados pelos bairros, sedes de blocos carnavalescos, berços da intelectualidade local.

Formalmente, os limites das freguesias vão dar lugar as Zonas Administrativas do IBGE nos anos 50/60/70, aos Setores Censitários (ligados as urnas eleitorais) nos anos 80 e aos bairros e Regiões Político-Administrativas nos anos 90, abrigando 94 bairros e 6 Regiões Político-Administrativas respectivamente. As figuras 15 e 16 ilustram esses limites. Vale ressaltar que exatamente as mesmas linhas dos Setores Censitários e urnas eleitorais passam a ser os limites das RPA’s e bairros componentes. Apipucos e Poço fazem parte da RPA 3 (noroeste), cujos limites estão esboçados na figura 16.

Em outras palavras, a igreja perde o poder administrativo, que passa para o controle do Estado, mas sua presença ainda é muito forte, tanto na atuação de seu ofício como na própria centralidade espacial de seu templo, seu largo e casario próximo. São marcos nas paisagens desses bairros, fontes de identificação desses recortes, contribuem para que haja o apego ao lugar, os laços afetivos entre os moradores e destes com o próprio sítio que habitam.

FIGURA 15

 – Os limites dos bairros recifenses, tomando-se como base os Setores Censitários do IBGE, anos 80. Fonte: PCR/SEPLAN, Recife, PE.

FIGURA 16

 – Delimitação das Regiões Político-Administrativas (RPA’s) e bairros componentes. In: RECIFE, Prefeitura da Cidade do. O Recife em números. Recife: Secretaria de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente, 1998 (folheto).

 

FIGURA 17

– Largo do Poço da Panela e proximidades. Assoreamento do Capibaribe. Foto: Gustavo Maia, 1999.

FIGURA 18

 – Apipucos e o açude de mesmo nome. Foto: Gustavo Maia, 1999.

__________

[21]

Geralmente, uma legua em quadra (uma legua de frente por uma de fundo). Marx, Murillo, 1991, pág. 34. 

[22]

Castro, Josué de, 1957, pág. 265. 

[23]

Costa Filho, Olímpio, 1944. 

[24]

“Na trajetória ascendente de sua função social, o estágio seguinte à da capela era sua conversão em uma capela curada, ou paróquia, ou ainda freguesia (sua denominação mais frequente no país). Esse momento é importante, pois é no âmbito das feguesias que os processos administrativos e de controle da Igreja e do Estado pela primeira vez se articulam em uma base comum. A formação das freguesias – divisões administrativas da Igreja, e base  de cobrança do dízimo – implicava na definição de seus contornos. Mas essa circunscrição eclesiástica, ao preencher também funções de ordem civil (como os registros de nascimento, de matrimônio e de óbito), converteu o ato de criação de uma freguesia simultaneamente no ato de sua vinculação formal ao sistema administrativo da Colônia. A criação de uma freguesia significava o estabelecimento de sua conexão com a ciscunscrição administrativa de uma vila já existente”.  Mori, Klara Kaiser, 1996, págs. 26-27.

3. Conclusões

O bairro tem futuro? Não sei se a escala bairro propriamente dita, mas sua essência, seu sentido deve permanecer. O bairro é a antítese da desagregação social. Pela escala do cotidiano há a possibilidade riquíssima do reconhecimento, do pertencimento e do fortalecimento de vínculos, por excelência. Ao contrário dos cenários multiculturais e plenos de virtualizações de hoje. É o que trata Richard Sennett quando diz que a religião pregava a amarração, o apego ao lugar, as raízes, ao contrário da Nova Iorque de hoje onde vive[25]. Será que o desenraízamento e o não apego ao lugar é menos importante na segurança e na estabilidade humana?

Por outro lado, o Recife tem suas peculiaridades. Os dois bairros estudados são históricos, e como tais, a centralidade da Igreja e casarios próximos é muito forte ainda hoje. Revela recortes urbanos já delimitados há pelo menos quatro séculos, que se escondem sob várias nomenclaturas e continuam encerrados nas mesmas linhas, no mesmo lugar, com o mesmo ar bucólico de recato recifense, cativando e apegando os que são dali, escondendo-se dos de fora. Tem nas águas seu encanto. O Recife das águas, se bem que meio esquecidas e renegadas hoje em dia. O Recife dos contrastes, onde cada palmo de chão é disputado até o último minuto e o último vintém. Para qualquer lado que se olhe, não há cenários em que não se vejam burguesia e favela, alta e baixa renda convivendo lado a lado, mirando-se cotidianamente. Não é diferente nos bairros estudados. O rio Capibaribe se configura um dos vetores de crescimento e eixo de ocupação da cidade. A sua várzea sempre foi uma região próspera e recanto dos endinheirados. Sua história se confunde com a história da cidade, tamanha foi a bravura de seus acontecimentos. Berço de movimentos culturais de repercussão nacional, assim como atividades artísticas e culturais. São bairros que estão fora do circuito turístico ‘rentável’ da cidade. Não se mostram nem são mostrados à primeira vista. Talvez consciente e até inconscientemente, seus habitantes os preservem da vista alheia e curiosa, para desfrutar eles próprios suas essências, suas utopias, elevarem seus orgulhos e preservarem suas histórias. Eis o Apipucos e o Poço da Panela do século XXI.

E, para concluir, assim como nenhuma paisagem é igual a outra, nenhum bairro é igual a outro, por mais semelhantes que sejam suas histórias, a ocupação urbana, o conteúdo sócio-econômico-cultural, por mais próximos que estejam. E é assim que devem ser encarados, como recortes únicos, individualizados.

__________

[25]

“O Cristianismo fez as pazes com a administração urbana, dividindo-se entre o espírito e o poder, seguros de que o domínio sobre a pedra não poderia vencer a cidadela da alma”. Sennett, Richard, 1997, pág. 303.

4. Bibliografia

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